quinta-feira, 17 de maio de 2018

24 SESSÃO - 16 MAIO 2018

Prosseguimos a abordagem à figura de José Relvas e ao Património com ele relacionado















 Um texto a propósito:


ABANDONADASa tela favorita de José Relvas

Joaquim Moedas Duarte 

Quem visitar a Casa dos Patudos - Museu de Alpiarça - que foi residência do grande republicano e homem de cultura José Relvas[1], por este doada à Câmara Municipal daquela vila - verá numa das paredes do escritório um quadro a óleo sobre tela intitulado Abandonadas (1670 X 1775 mm), da autoria de Constantino Fernandes. Era o quadro favorito de José Relvas que o queria perto de si, no gabinete de trabalho que ainda hoje se conserva com os objectos de uso e o calendário de cartões em caixa de mogno e enfeites de prata, imobilizado no dia da sua morte: Outubro, Quinta-feira, 31 (1929).

José Relvas foi um grande proprietário agrícola que soube gerir com eficácia e proveito um bom núcleo de terras de vinha e olival. Desgostoso com a inépcia governativa monárquica, assumiu o risco da oposição política indo ao ponto de se envolver na preparação e realização da revolução republicana. Foi ele quem proclamou a República na varanda do Município de Lisboa, na manhã de 5 de Outubro de 1910.

Formado no Curso Superior de Letras de Lisboa, não descurou a formação prática em economia e finanças, tão necessária à gestão dos bens e, mais tarde, às responsabilidades de Ministro das Finanças do primeiro Governo republicano, tendo sido ele o criador da nova moeda, o escudo que substituiu o real. Porém, outra faceta da personalidade fascinante deste homem era a sua cultura artística. Exímio executante musical – tocava violino – viajou pela Europa e tornou-se um apreciador de arte de elevado critério, o que o levou a adquirir para a sua residência solarenga de Alpiarça um notabilíssimo acervo de peças de arte portuguesa e estrangeira que engloba pintura, escultura, tapeçaria, louças, mobiliário e azulejaria e que constitui o miolo do Museu que podemos visitar. José Relvas foi um homem preocupado com o bem público e com a justiça social, como bem mostra o seu testamento. Tendo visto morrer os seus três filhos, legou todos os bens – Casa e rendimentos de proprietário agrícola – à Câmara Municipal de Alpiarça, para que fosse construído um Asilo para os alpiarcenses pobres, o que veio a ser feito: ele lá está, do outro lado da estrada, frente à Casa-Museu.

O breve retrato do grande republicano era necessário para melhor entendermos o significado do quadro Abandonadas,[2] de Constantino Fernandes. A temática social que nele se adivinha era bem cara a José Relvas. Em primeiro plano, duas mulheres e um rapazito deslocam-se da direita para a esquerda, vindos de algum sítio que os repele. Não sabemos que sítio seja. Podemos, também, supor que se afastam de alguém de quem receberam ordem de expulsão. O que nos impressiona é o rosto destas personagens em que se expressa uma dignidade ferida, uma resignação mansa e fatalista, visível sobretudo na mulher do xaile amarelo e na criança. Nesta, a expressividade é avassaladora: não lhe vemos os olhos nem a boca, o rosto está numa posição abaixo do nosso olhar, mas a inclinação da cabeça e a mãozita que aconchega a gola do casaco revelam um enorme desamparo e uma infinita tristeza. A mulher do xaile amarelo traz uma criança ao colo, presença sugerida pelos folhos brancos e pelo volume dos braços que fazem berço. Mas ela não se fixa na criança. No seu rosto sério, os olhos perdem-se numa lonjura que vai muito para além do chão para onde parecem olhar. Na sua expressão está contida uma história de vida, um passado que não se adivinha risonho, mágoas acumuladas. É como se olhasse para um abismo que, de tão conhecido, já não a assusta. O mesmo abismo, aberto no chão, onde se parece fixar o olhar da criança.

A personagem do meio tem uma atitude diferente. Olha para trás, num derradeiro olhar em que se despede de alguém ou de um lugar. Não há rancor nem ameaça nos seus olhos, antes uma doçura e uma serenidade de quem aceita o inevitável. Mas a boca cerrada denota decisão, vontade de resistir à ameaça. As mãos estão ocultas debaixo da manta que lhe pende dos ombros. Talvez a mão esquerda se encoste ao ombro do rapazinho que, ao senti-la, aproxima a sua própria mão, como se respondesse num gesto silencioso.

Que mundo é o destas mulheres? Pelas roupas, depreendemos que será tempo de frio, o que sublinha o desconforto da cena, a juntar à terra do chão e às poças de água. A paisagem que as envolve é de uma zona fabril, com chaminés altas que expelem fumo e casario de área habitacional pobre. As colinas do fundo parecem-nos familiares, lembram a Serra de Monsanto, o que nos permite conjecturar que a cena se passa na zona de Alcântara onde, no início do século XX, se concentravam algumas fábricas.

O quadro foi pintado em 1909 por Constantino Fernandes. O título – Abandonadas – parece confirmar a nossa leitura: o quadro representa mulheres do povo anónimo num momento de desamparo. Temos a tentação de imaginar histórias: terão ido pedir trabalho e receberam uma má resposta? Foram expulsas de casa por um homem alcoolizado? Foram despejadas do casebre por um senhorio implacável? Mas logo percebemos que qualquer leitura concreta só empobrece o quadro.
Porque o que lhe dá força é o seu enorme poder sugestivo, sem referências explícitas. O título genérico e toda a composição concentram uma ideia essencial: o sofrimento de duas mulheres abandonadas, num tempo em que a condição feminina das mulheres do povo era muitas vezes intolerável.

Constantino Fernandes (1878 – 1920) insere-se na grande corrente artística do naturalismo / realismo [3], optando por temas de carácter social, pela representação rigorosa do corpo humano[4] ou pelo retrato. São características do seu estilo o rigor do desenho e a utilização de uma paleta elementar da qual tira todo o partido possível. As figuras surgem à boca da tela em enquadramento que mais tarde, em linguagem cinematográfica, se designou por “plano americano”- figuras humanas a 2/3, com corte por cima do joelho, o que permite uma maior aproximação do olhar de quem observa e sublinha a expressão dramática dos rostos e do movimento das figuras representadas. A tela “Abandonadas” é um exemplo brilhante da qualidade artística de C. Fernandes, reconhecida desde o momento da sua criação, quando o autor, bolseiro (“pensionista do Estado, como então se chamava) em Paris, foi distinguido com uma “primeira medalha” em 1909.




[1] Sobre José Relvas:
José Raimundo Noras – José Relvas (1858-1929), Fotobiografia. Leiria: Edição Imagens & Letras, 2009.
Catálogo da exposição José Relvas, o conspirador contemplativo. Lisboa: Divisão de Edições da Assembleia da República, 2008.
[2] Não é consensual o título do quadro. Nas obras referidas na nota 1 o quadro é designado por “As abandonadas”. José Augusto França, in: A arte em Portugal no século XIX (Lisboa, Livraria Bertrand, 1967) designa-o sem o artigo definido. Carlos Augusto Lyster Franco, que foi contemporâneo de Constantino Fernandes e com ele privou, também designa o quadro como “Abandonadas” no opúsculo “O pintor Constantino Fernandes”, separata do «Correio do Sul», Faro, 1950. (reproduzido in: Ana Rita Carvalho Afonso - A obra gráfica de Carlos Augusto Lyster Franco, Dissertação de Mestrado, vol.II.[Em linha] Faculdade de Belas Artes, Universidade de Lisboa, 2008. [Última cons. Em 29 de Abril de 2014]. Disponível em: http://hdl.handle.net/10451/7783)

[3] Do ponto de vista da pintura, ao contrário do que se passa na Literatura, naturalismo e realismo são dois conceitos que facilmente se confundem. Não cabe aqui tentar a destrinça que remete para considerações teóricas ligadas à Estética.
[4] Cf. Alberto Cláudio Rodrigues Faria – A colecção de desenho antigo da Faculdade de Belas-Artes de Lisboa ( 1830- 1935): tradição, formação e gosto. Dissertação de Mestrado em Museologia e Museografia, vol. III, p. 135 [Em linha] Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa, Lisboa, 2008.[Última cons. Em 29 Abril 2014]. Disponível em:






Vem a propósito:

Nota (breve) sobre Bordalo, a Jarra e Beethoven
João B. Serra
(Professor da Escola Superior de Artes e Design das Caldas da Rainha.)

Em 1895, acedendo a uma encomenda de José Relvas, proprietário ribatejano com vastas relações na elite da cultura, Rafael Bordalo Pinheiro iniciou a concepção de uma peça de cerâmica dedicada a Beethoven. Os trabalhos de elaboração dessa peça – uma jarra de grandes proporções – foram complexos e demorados. Absorveram a atenção e o empenho de Bordalo e mobilizaram as capacidades dos melhores ceramistas que ainda o acompanhavam no seu atelier da Fábrica de Faianças das Caldas da Rainha. No seu “Livro de Empreitadas”, um desses operários, Avelino Soares Belo, deixou um rasto manuscrito dos passos dessa aventura por todos seguida com indisfarçada ansiedade. O próprio Bordalo registou num “Caderno de Notas” transcrito pela primeira directora do Museu que tem o seu nome em Lisboa, Julieta Ferrão, o andamento atribulado da operação. Encarada como uma extravagância bordaliana, uma provocação de génio aos condicionamentos do processo cerâmico, a Jarra Beethoven pode talvez ser tomada como uma tentativa de esconjurar a maldição duma empresa que falhara sucessivamente os projectos industriais que presidiram à sua criação. Certo é que a maldição se abateu cedo sobre a própria jarra. Das peripécias que rodearam a sua abertura na roda de oleiro, secagem e cozedura, até à constatação de que era inadequada para o local a que o cliente. de Bordalo a destinava, tudo se conjugou para trocar as voltas ao destino desta peça singular.

Rejeitada por Relvas, a jarra deambulou, ao longo dos anos 1898 e 1899 entre Caldas e Lisboa (exposição no foyer do Teatro D. Amélia), e entre Lisboa e Rio de Janeiro, sempre em busca de um comprador que lhe fizesse jus. O aplauso da imprensa, ecoando porventura a curiosidade popular, escondeu mal as reservas da crítica. Ramalho Ortigão, por exemplo, sempre pronto a glorificar Bordalo, deixou escapar em família um juízo desfavorável: “bela peça para concurso” mas “obra defeituosa”.

Leiloada no Brasil, no Verão de 1899, depois de mais uma vez ter ficado sem comprador, acabou por, ironicamente, sair a um número que integrava um lote de rifas previamente recusadas. Oferecida, enfim, por Bordalo a um mecenas brasileiro, foi por este entregue em doação ao Presidente da República que a destinou à sala de música do Palácio do Catete, onde temporariamente permaneceu. Celebrada como um prodígio, a jarra Beethoven arrastou a sua incrível dimensão (280 cm de altura) e a sua incontida profusão de elementos decorativos como outros tantos factores dissuasórios de um desejo de compra. Devemos então procurar descortinar os motivos que levaram Bordalo a deitar ombros a tal “excesso”. Ramalho que também se colocou essa interrogação em 1898 achou plausível que “uma tão gigantesca coisa” tivesse sido “feita unicamente no intuito pouco poético e extra-artístico de entupir de admiração os basbaques” .

 Justificava-se um gesto de tamanha teatralidade? Sim. Não tanto pela necessidade de afirmação pessoal do autor, então com um curriculum sólido de uma dúzia de anos de renovação da cerâmica portuguesa, mas sobretudo como chamada de atenção para a situação da empresa que via definhar a sua carteira de encomendas. Sousa Viterbo deixou-nos a esse propósito, uma informação clara no Diário de Notícias de 26 de Outubro de 1898: “Mal pensaríamos nós, ao contemplar a admirável Jarra Beethoven, que aquele seria o derradeiro canto do cisne do poeta da cerâmica. Efectivamente, não parece haver a menor dúvida a este respeito. Temos presente uma carta de Bordalo Pinheiro em que ele nos comunica, doloridamente, a resolução de fechar a sua fábrica, o seu home, o seu lar, a sua ambição, a sua felicidade” . Na mescla de sentimentos contraditórios que a jarra inspirou – espanto e admiração perante a ousadia do artista mas recusa geral em trazer a obra para um convívio partilhado – adivinha-se uma alegoria do destino da unidade cerâmica onde fora produzida. Bordalo quis que assim fosse – uma obra extraordinária que ninguém adquirisse – e provavelmente concebeu-a como uma “peça final”. Com intuito semelhante, anos antes, cometera um projecto equiparável: a Talha Manuelina, ou Talha dos Operários, cuja venda estava indexada ao pagamento de salários em falta. 

  A Jarra Beethoven não mais foi vista em Portugal. Raros foram os portugueses que a puderam observar e que do facto deram notícia até hoje. Hoje, certamente a precisar de  restauro, depois das mutilações a que foi sujeita, permanece prisioneira da sua maldição, num discreto recanto do Museu das Belas Artes do Rio de Janeiro. Conhecendo os esforços recentemente efectuados lhe devolver a sua própria história – que suponho ainda não coroados de êxito – gostaria de deixar aqui um modesto contributo para lhe emprestar um “novo” destino. 

  Remeto para a história de Ludwig Van Beethoven. Nascido em Bona em 1770, Beethoven contactou desde o berço com a música, para a qual cedo revelou um talento de excepção. Reconhecendo a necessidade de lhe proporcionar o contacto com grandes mestres, o seu protector enviou-o a Viena de Áustria em 1792. Nos três anos seguintes recebeu aulas dos mestres vienenses Haydn, Albrechtsberger e Salieri. Em 1794 compôs a sua primeira obra original, celebrada como um trabalho muito promissor. Em 1798, o príncipe Lobkowitz encomendou-lhe 6 quartetos para cordas. Era uma encomenda prestigiosa mas exigente. Mozart e Haydn tinham elevado o género a grande projecção. Lobkowitz, na altura em que desafiou Beethoven dirigiu encomenda idêntica ao velho mestre Haydn. O jovem músico aplicou-se com determinação durante os dois anos seguintes na composição dos quartetos, cuja edição, em 1801, significaria simplesmente o triunfo. O último quarteto a ser concluído terá sido o 4º, provavelmente de um só jacto, pois nunca foi encontrado o respectivo estudo prévio. A peça foi recebida com enorme entusiasmo, consagrando definitivamente o seu autor.  Diz-se que Beethoven confidenciou na altura: “É uma merda, mas está bem para este público de merda”.
Foi esta a peça musical – para dois violinos, violoncelo e violão – que Rafael Bordalo Pinheiro escolheu para assinalar, 100 anos decorridos sobre a sua criação, a Jarra com que impressionou o mundo jornalístico da sua época. O jovem Beethoven triunfante, vergando o público de Viena que a si próprio se considerava como o mais difícil, serviu de mote a um Bordalo que julgava ter chegado ao fim de um atribulado percurso cerâmico e que pretendeu assinalar esse final com uma obra que para sempre testemunhasse o seu inconformismo de criador.

NOTAS

1. Artigo publicado em Suplemento especial da Gazeta das Caldas, dedicado a Rafael Bordalo Pinheiro, Janeiro de 2007.
2 “A jarra de Bordalo é inteiramente uma bela peça para concurso de cerâmica porque não há dificuldade que nela não se ache resolvida. Como composição decorativa, no ponto de vista absolutamente estético, é obra muito defeituosa, excessiva, complicada, destituída absolutamente das condições fundamentais de uma obra de arte, que são a ponderação, a harmonia e a lógica de conjunto”. Ramalho Ortigão, Cartas a Emília, introdução., selecção, fixação do texto, comentários e notas por Beatriz Berrini, Lisboa, Lisóptima/Biblioteca Nacional, 1993

3. Sousa Viterbo, “Cem artigos de Jornal”, Lisboa, Diário de Notícias, 1912 








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José Relvas Memórias políticas, 2 vols., Prefácio de José Medina, Apresentação e notas de Carlos Ferrão, Ed. Terra Livre, Lisboa, 1977






Excerto do texto da Apresentação, de Carlos Ferrão:


Postal alusivo à implantação da República





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